terça-feira, 11 de agosto de 2009

Breve Divagação

O ser humano é complexo. Complexo em sua essência. Complexo em sua maneira de ver e pensar. Complexo nas suas reações. Complexo até mesmo na hora de tratar os sentimentos. Isso é normal. O mundo é complexo. A vida é complexa. O cosmos é complexo. As vezes é como se estivéssemos em um labirinto tentando reconhecer as migalhas que lançamos no caminho, num desejo louco de achar a saída. Outras vezes é como se fossemos náufragos à deriva, buscando refúgio em um único pedaço de madeira, solto das lembranças que temos. Isso sem falar naquela sensação estranha de perceber que nos perdemos quando tentamos nos encontrar. É o ciclo complexo das coisas. Elementos que tendem a retornar ao mesmo ponto de partida.

Existiria solução para tamanha realidade? Aprendi uma frase com uma "amiga" que diz assim: "O problema de ser demasiado profundo é que nem sempre a resposta está no fundo de um poço". Sempre tendemos a lançar-nos de cabeça no poço em busca de "respostas", quando na verdade, tudo está dentro de nós mesmos.

Sentimentos e lembranças são bichos estranhos de se entender. São criaturas difíceis de se domesticar. Quando estão na superfície do coração e da mente tornam-se tão leves que corremos o risco de perdê-los, como quando o vento sopra uma folha e a leva pra longe. Quando arraigados com raízes profundas, tendem a provocar feridas que nunca cicatrizarão, que doem, que machucam, que incomodam. E a dor, é uma dor que atinge a alma. Mas estes não são os mais complicados. Há aqueles que se escondem num lugar tão oculto, tão escuro que, passamos parte de nossas vidas sem nem ao menos percebê-los. Então um belo dia eles resolvem sair de seu esconderijo. E a força com que vem é tão forte, tão arrebatadora, se expande com tamanha rapidez, que ficamos sem reação; perdemos o controle de nossas próprias ações. Somos arrastados pela intensidade desses sentimentos e lembranças. Perdemos a racionalidade, o auto-controle, e nos deixamos ser conduzidos por este turbilhão insano.

Como reverter essa situação? Sinceramente não sei. O que sei é que se um dia criarmos algum mecanismo para que isto aconteça, correremos o risco de deixarmos de ser "humanos". Há uma singeleza no complexo. Ser humano é ser complexamente simples ou simplesmente complexo.

Há coisas que permanecerão muito tempo sem respostas, mas nunca perderão a beleza.

quarta-feira, 5 de agosto de 2009

Navegar é preciso, viver não é preciso

Esta poderia ser mais uma história comum, no entanto, é a incomum história de Maria. Você poderia até pensar que esta deve ser uma história como as outras, de muitas Marias, todas iguais, comuns. Mas esta Maria é diferente e digo isso com toda convicção. Nenhum ser humano na face desta inóspita terra, levou tantos baques da vida como Maria.

Aos sete anos Maria perdeu a mãe atropelada por um ônibus de viagem. Aos doze perdeu o pai assassinado em um assalto. Filha única foi morar com uma tia solteirona que mal conhecia, chamada Ofélia. Ainda bem, diria você, mas ao contrário, tia Ofélia fazia a madrasta da Cinderela parecer a fada madrinha. Rígida, tratava Maria como um recruta recém chegado ao exército, e isso não é um exagero.

- Menina malcriada, aqui você aprenderá a ser gente – dizia tia Ofélia.

Todo o dia ao acordar, um mesmo pensamento tomava conta de Maria:

- Ainda arrumo um jeito de sumir daqui e deixar essa megera morrer engasgada com o próprio veneno.

E acreditem ou não, Maria tentou, mas tentou errado. Foi pior, a tia foi atrás dela e a encontrou no meio do caminho. As bruxas dos contos de fadas costumam voar em vassouras, tia Ofélia era mais moderna, foi de viatura policial. Aquela noite foi inesquecível. Primeiro um sermão longo, exaustivo e moralista do delegado, amigo de tia Ofélia diga-se de passagem. Depois um mês de trabalho dobrado no campo de concentração da tia, perita em terrorismo psicológico, e tortura mental. Maria repetia para si mesma:

- Velha miserável, um dia eu saio daqui.

Maria foi sobrevivendo a tudo isso durante os anos. Aos dezesseis teve seu primeiro namorado, aquele que ela desejou que fosse seu príncipe encantado, montado em seu belo cavalo branco, que entraria na casa da tia e a salvaria daquele tormento. Era ele, Marcelo, seu príncipe. Ingênua menina. Marcelo mostrou ser mais vilão que príncipe. Em três meses de namoro, Marcelo havia
conquistado seu objetivo: tirar a inocência de Maria. Iludida a menina pensou:

- Agora minha vida vai mudar!

E mudou mesmo, principalmente Marcelo. Ele mudou de Estado. Seus pais tinham recebido uma proposta de trabalho no Norte do Brasil, e aceitaram. Maria ficou decepcionada, afinal de contas, ela no sudeste e ele no norte tornaria a relação inviável. O pior de tudo foi ouvir o que Marcelo disse:

- Maria se toca, eu nunca quis nada sério com você. Vai procurar sua turma e me deixe em paz.

Pobre Maria, sozinha, abandonada e ainda morando com tia Ofélia. Nesse momento a megera não se conteve e pegou ainda mais pesado com a menina, destruindo sua auto-estima.

- Menina idiota, ainda não percebeu que um rapaz em sã consciência jamais vai querer algo sério com você? Você é sem graça, sem atrativos e não tem qualidades. Ficará sozinha, largada como um trapo velho.

Maria trancou-se no quarto e chorou durante horas. Que destino triste o de Maria. Uma semana depois, tudo um pouco mais calmo, ela desmaia no meio da cozinha enquanto preparava o almoço. Preocupada com a saúde, pensando estar anêmica, recebe a cruciante notícia: está grávida. Maria sentiu um grande buraco se abrir no chão do consultório médico, puxando-a para dentro. Seis semanas de gestação. Sua vida estava acabada. Mas nada disso se comparou à reação que teve tia Ofélia. A bruxa tentou obrigar Maria a fazer o aborto. Maria decidiu. Não faria e foi o que bastou para a furiosa tia colocá-la para fora de casa.

E agora? Sem amigos, sem família, expulsa de casa e grávida de um rapaz que está a centenas de quilômetros longe e que não dá a mínima para ela. Perambulou pelas ruas até parar em um abrigo para menores. O lugar era horrível, sujo, sem conforto, realmente precário, porém, era a única coisa que tinha no momento.

Dias depois, Maria conseguiu um emprego em uma lanchonete, alugou um quartinho em uma pensão só para moças e pensou:

- Agora finalmente terei paz.

Tudo indicava que sim, até o dono da lanchonete decidir que queria ficar mais “íntimo” de Maria. Grávida de quatro meses, sentiu nojo daquele homem horrível e lhe deu uma bofetada. A bofetada custou-lhe o emprego. Novamente na rua, sentou num banco de praça e começou a perguntar a Deus:

- Hei, você que está aí em cima, por que tem tanta raiva de mim? Por que tira tudo o que tenho? O que eu fiz para merecer uma vida tão miserável e desgraçada? Responda-me.

E a resposta veio. Uma torrencial chuva começava a precipitar-se do céu. Totalmente encharcada, ela chegou na pensão e encontrou a proprietária com sua mala na mão.

- Fiquei sabendo que perdeu o emprego. Bem, sem emprego suponho que não terá como pagar o aluguel. Então vá embora, procure outro lugar para ficar. Além do mais, você está grávida. Minha pensão não é lugar para moças como você, somente moças de família podem ficar aqui.

De mala na mão, vagando sem rumo, sentiu vontade de tirar a própria vida. Olhou os carros passarem velozmente pelas ruas molhadas e de súbito lançou-se para cima deles. Foi atropelada. Estirada no chão, perde a consciência, acordando depois num quarto de hospital. Meio zonza, ficou imaginando se estava viva ou morta. Avistou uma simpática senhora a sua frente que lhe sorria, enquanto afagava seus cabelos com a mão.

- Acalme-se meu anjo, está tudo bem agora.

- O meu bebê, está tudo bem com ele?

- Calma. Seu bebê está bem. Foi por pouco, mas ele está bem.

- Eu queria ter acabado com a minha miserável vida. Não quero que o meu filho tenha a mesma sorte que eu.

- Meu anjo, não diga isso. A vida é a maior dádiva que o Criador nos dá. Gerar uma outra vida dentro de nós é um milagre sem dimensões.

- Não! Não há como desejar continuar vivendo. Tudo pra mim acontece da pior forma. Não tenho motivo pra querer viver – chorava amargamente Maria.

- Tem sim. Esta vida que está aí dentro depende de você , assim como você depende dela. Viver não é fácil. É difícil navegar contra as marés, mas é preciso. Nessa vida alguns sofrem, outros tem alegria, muitos choram, mas todos nós independente de quem sejamos, passamos por provações que desafiam nossa fé no Criador, no mundo, nas pessoas, mas nesses momentos, temos que arrancar forças de dentro de nossa triste situação. Ninguém nesta vida sorri, sem que antes tenha chorado.

- Não consigo entender onde a senhora quer chegar.

- Meu anjo, hoje se você quiser, sua vida pode mudar.

- Como?

- A resposta está em você. Está no seu pequeno milagre. Você é uma menina jovem, com uma vida inteira pela frente. Tenha fé. Tenha coragem e acima de tudo, tenha amor por si mesma e pelo seu pequeno milagre. Agora tenho que ir. Descanse, você precisa.

- Espere, qual o nome da senhora, eu....

A simpática senhora, já havia aberto a porta e sumido. Logo em seguida uma enfermeira entrou.

- Hum, vejo que já acordou.

- Enfermeira, quem era a senhora que acabou de sair daqui?

- Senhora? Sinto muito, mas não há ninguém nessa ala do hospital, somente eu que estou de plantão.

Maria ficou assustada. Quem seria àquela senhora? Por que lhe disse tudo aquilo? Uma coisa era certa, cada palavra dita por ela, a fez refletir e desejar um novo rumo a sua vida. Sentia vontade de viver. Viver para ela mesma, viver pelo filho.

Saindo do hospital, voltou para o abrigo. Em poucas semanas, começou a vender doces nas ruas. Quatro meses depois seu bebê nascia. Era tão pequeno, tão delicado, frágil. Deu-lhe o nome de Gabriel.

- Meu pequeno milagre, Gabriel, um anjo enviado dos céus para mim.

Maria não se sentia mais sozinha. Todos os dias esforçava-se mais. Alugou um novo quartinho em outra pensão. Lavava roupa pra fora, passava, fazia faxina nas casas de pessoas do bairro. Logo que Gabriel fez dois anos, inscreveu-o em uma creche e começou a trabalhar como atendente em uma padaria. Agora não mais se lamentava nem maldizia sua vida. Sentia-se amada por si mesma. Tia Ofélia, Marcelo, o dono da lanchonete e a dona da pensão, eram agora uma lembrança distante, que não doía mais.

Hoje Maria tem trinta e dois anos e Gabriel tem quinze. Os dois moram em uma casa de quatro cômodos bem modesta, mas perfeitamente arrumada. Maria trabalha como costureira em sua pequena oficina e Gabriel acaba de iniciar o Ensino Médio. Seu desejo é ser professor, formar-se em Letras. Ele é grato por tudo o que a mãe fez para criá-lo e educá-lo.

Maria sente-se realizada, com desejo de viver intensamente cada dia, por si mesma e pelo filho que tanto ama, o seu milagre. E agora ela está namorando. O nome dele é José, um homem simples, mas decente em toda a sua maneira de viver. Tudo demonstra que esse namoro possa virar coisa séria, mas isso só o futuro vai revelar.

Todos os dias Maria deseja poder reencontrar aquela senhora que tanto a ajudou naquele momento difícil. Ela foi à resposta enviada por Deus naquela hora de desespero. Talvez fosse um anjo, mas tudo o que Maria quer é poder agradecê-la e dizer-lhe que hoje é feliz e sente prazer em viver.

O amante da expressão popular

Há a figura distinta de um escritor que assume a forma de ícone literário-lingüístico, que ganha força e densidade por meio de suas obras de construção da linguagem popular. Este escritor é Jorge Amado.
Jorge Amado é um romancista que se funde dentro do próprio signo da linguagem, transformando-se em um escritor coloquial por excelência, que embora dominasse a norma culta (meio de ascensão de certa classe literária preconceituosa), não se importava com formalismos gramaticais. Amado foi o escritor mais vendido no exterior, até a chegada de Paulo Coelho, mas mesmo assim, tornou-se alvo do desdém da crítica, que o considerava um escritor de certo nível inferior.
Não se importando com a opinião dessa crítica reacionária, projeta uma literatura popular, usando gírias, provérbios, frases feitas e palavrões, como identificação do gosto e do nível culto popular. Pretendia criar uma obra que fosse de acessível leitura, não visando criar um novo estilo literário ou gênero, mas uma obra literária que representasse toda a brasilidade de uma nação e bahianidade de uma comunidade lingüística. “Escreve o povo, para o próprio povo”.
Para Eduardo de Assis Duarte, da Universidade Federal de Minas Gerais, o escritor incorporou a postura modernista que celebrava a língua “errada” do povo. Na verdade, Amado vai muito mais além, ele representa em suas obras, uma forma mais significante do código lingüístico brasileiro; demonstra uma linguagem carregada com todo o ideário e diversidade de uma nação diversificada em todos os ramos de sua formação cultural, social e ideológica. Cria um novo modo de encarar o indivíduo, marginalizado por seu falar impróprio, dando-lhe argumentos capazes de desmistificar todo processo de desvalorização da expressão popular.
Na visão de Jorge Amado, as palavras significam vida, assim como a literatura. Devem existir sem complicação, chegando ao povo de maneira simples e direta, com uma linguagem que personificasse o próprio povo.
Ao fazer um confronto entre a obra de Guimarães Rosa e a de Jorge Amado, no primeiro a vida e a criação, estava no campo das palavras, enquanto que no segundo, o foco está na criação de uma sociedade utópica, sem preconceitos e hierarquias, incluindo as palavras. Traduz uma linguagem do dia-a-dia, mesmo quando era acusado de usar “uma linguagem descuidada”. Para muitos críticos,ele deveria usar a gramática tradicional, grande mãe e protetora da raça humana. No entanto, Amado teve personalidade forte e nunca permitiu que seus romances fossem corrigidos e enquadrados nas normas gramaticais. Sua proposta era romper com todo o enlaçamento preconceituoso da gramática.
Prova disso são suas personagens que trazem em seu corpus, todas as particularidades lingüísticas e fonéticas em seus diferentes contextos. Por isso, Gildeci de Oliveira Leite, que coordena o Dicionário Cultural Amadiano, o classifica como “um antropólogo da ficção”. Uma das expressões criadas por Jorge Amado, que é bem interessante é “rebucetê”, que significa confusão, briga ou algazarra.
Essa simplicidade e plasticidade da linguagem de Amado, facilita a transposição de suas obras para a televisão, teatro e cinema. Por isso a linguagem em Amado é considerada carregada de significado, tátil e sedutora.
Jorge Amado é mais um dos grandes militantes que buscam anular de vez todo o estigma do preconceito lingüístico que circunda a mentalidade literária de uma elite retrógrada e jurássica.

A formação dos professores em um mundo mutável

Ocorrem constantes mudanças na relação educador-aluno / aluno-escola / escola-ensino / ensino-educador. A velocidade das produções de informação começa a romper toda a estrutura tradicional de ensino, pondo em xeque a postura do educador, e relação a essas mudanças. Hoje o educador está no nível de mediador e não mais como detentor soberano e absoluto do conhecimento. É necessário que o educador esteja atualizado quanto a todo processo de transformação que ocorre no mundo.
Com a constante alteração e multifacetação do espaço acadêmico, antes demarcado e delimitado por uma linha ideológica tênue, o educador inserido em um novo mundo cibernético é posto a prova quanto a sua qualificação e habilidade de adaptação a esta nova (e bem presente) realidade. Educar não é apenas transmitir informação ou conhecimento, mas sim, gerenciá-lo e orientá-lo a esse rumo de redescoberta do aprendizado.
O processo de aprendizagem dá-se inicialmente no próprio educador, que precisa atualizar-se e aperfeiçoar-se para depois redirecionar esse aprendizado ao educando. O papel da escola, como instituição de ensino fechada dentro de seu próprio mundo educacional, também muda neste novo momento. É preciso uma responsabilidade social quanto ao relacionamento da instituição com seu educando e a comunidade onde ambos estão inseridos. É necessário focar o relacionamento interpessoal entre os alunos e sua manifestação exterior com a comunidade. Caberá ao educador fazer a vez do intermediário desse processo.
A utilização de ferramentas de cunho cultural são, hoje em dia, mais necessárias e imprescindíveis. As novas tecnologias também são importantes para essa nova fase do ensino, funcionando com atrativo e condutor de uma melhor assimilação do conteúdo a ser trabalhado entre os educandos.
O que não deve acontecer, em hipótese alguma, é uma estagnação ou reação contrária por parte do educador, como forma de resistência a essa nova realidade.
Em um mundo mutável, em constante evolução, caminhando na velocidade dos avanços tecnológicos, exige-se uma nova postura nas relações de ensino, de educador e instituição. Sem essa consciência, entraremos por um caminho de caos educacional.

O Poder da Leitura

Desde os primórdios da humanidade, a distinção entre o poder e o ser está nas mãos, ou melhor, nas mentes daqueles que buscam ou possuem o conhecimento. A ferramenta mais eficaz e direta de aquisição do conhecimento é a leitura, capaz de somar informações e instruções com o aprimoramento de uma visão mais factual e libertária.
Durante séculos, a pior e maior forma de aprisionamento humano não esteve nos cárceres, masmorras ou calabouços. Esteve na inibição da busca do conhecimento por meio da leitura. Ao invés de torturas físicas, censura à liberdade de pensamento, a execração da imaginação. Enquanto livros eram lançados nas fogueiras da Idade Média, mentes eram enterradas nas cinzas, inertes no vácuo da ignorância. O que diriam os grandes pensadores, filósofos, cientistas, homens e mulheres de mentes brilhantes, revolucionários de suas épocas, se lhes fossem vetado o direito à cultura, ao conhecimento. O poder não está apenas no querer, e sim no agir.
Anteriormente, fora dito por um ilustre e sábio pensador: "Penso, logo existo". Talvez seja hora de mudar esta máxima para: "Leio, logo penso e assim existo".
O que seríamos agora no presente, se no passado não tivéssemos conhecido os mundos que nos abriram suas portas por meio dos livros? As críticas, as análises, as inconstâncias do ser e do ter, a antiga problemática humana de origem e destino, não estariam tão evidentes em nossas vidas se a leitura não fosse algo tão importante.
É hora de quebrar velhos dogmas e paradigmas, que há tanto acorrentam em escuros porões, a liberdade intelectual de toda a nossa civilização moderna.
Se a caixa de Pandora do enegrecimento do saber está aberta, é necessário que seja novamente lacrada. O poder da leitura é algo que dissipa as trevas da imobilidade e revela a luz do conhecimento. Não um conhecimento de teorias, convenções e suposições, mas de fatos e concretizações que só podem ser alcançados por meio da exploração de uma leitura consciente e aprofundada.
Paz na terra e aos homens de boa vontade. Paz na terra e aos homens que são livres para pensar, que têm seu pés no chão, a cabeça nos céus e os olhos nos livros.
É hora de quebrar cadeias, destruir grilhões, proclamar liberdade aos presos intelectuais.
De fato, a única maneira do ser humano alcançar sua independência, social, moral e intelectual, é usando a ferramenta chamada leitura; a soma de querer e ação; de sua visão agora apurada, discernindo o correto do duvidoso. Eis a ferramenta que abre e fecha portas, basta apenas lançar mãos dela e girar a chave.

terça-feira, 4 de agosto de 2009

Do silêncio

Ele habita nas trevas.
Sua alma está imersa num charco.
O choro, o desengano, a fúria,
Sentimentos tão ruins
Aprisionam seu espírito.
Não há espaço encantado,
Nem caminho com flores
No lugar em que ele está.
Na imensidão ouve-se o som
Angustiante e desesperador
Do gemido que já não pode mais
Ficar preso em sua débil garganta.
Há um frio cortante e ácido,
Um gear de lágrimas sem esperança
Que brotam como erva daninha
Inútil, miserável em seu todo.
Ele estende as fracas mãos
Na tentativa de alcançar as estrelas,
De tocar o céu que sobre sua mente
Estende-se como pavilhão luzente,
Impávido, enganador e traiçoeiro.

Óh! vento perene!
Chama de vida e ventura,
Abraçai o miserável que chora,
Envolvei o aflito que sangra,
Sangra no oculto de seu sofrimento,
Esvaindo seu mundo de sonhos,
Seco ramo sem vida!

As sombras agora caem densas,
Como lúgubre presságio de tragédia.
Os olhos já vão perdendo o brilho,
A face num mármore frio se vai tornando,
Ele pende, declina e ao chão se põe,
Exausto de lutar...
Rendido contempla o céu,
Almeja voar e alcançar as estrelas,
Tornar-se luzidio, incandescente
Astro de fulgor...
Mas já não há forças,
Sua vontade não é mais capaz
De sustentá-lo em seu desejo.
Um silêncio triste paira no ar,
O gemido calou-se...
Há apenas um som derradeiro,
Fatigado suspiro de dor...
O mundo pára...
O tempo cessa...
Não há mais sombras no caminho,
Apenas o silêncio... só o silêncio...

Retrato do artísta quando jovem, de James Joyce

O Retrato do Artista Quando Jovem narra as experiências do jovem Stephen Dedalus e termina com a recriação de seus ritos de passagem para a idade adulta, que incluíram deixar para trás a família, os amigos e a Irlanda para viver no continente.
Seus capítulos organizam-se mais por temas ou momentos específicos da vida do alter ego de Joyce, Stephen Dedalus.
O percurso exterior de Dedalus é relativamente simples e esquemático. O livro tem apenas cinco capítulos, que equivalem, cronologicamente à vida escolar de Stephen. O primeiro descreve sua infância de menino frágil; o segundo mostra-o entrando na adolescência e descobrindo o amor; no terceiro, esse amor transforma-se em luxúria e o adolescente entrega-se às prostitutas; no quarto, arrependido, o jovem debate-se entre uma suposta vocação sacerdotal e o chamado artístico; no quinto, todos os conflitos culminam em sua opção pelo exílio, afastando-se da família, da pátria e da religião, para entregar-se conscientemente aos apelos da sensualidade e da criação artística.


Microanálise

O romance Retrato do artista quando jovem é construído em torno das técnicas do fluxo de consciência.
Ao escrever o romance utilizando-se dessa técnica, James Joyce possibilita que o leitor penetre na mente de seus personagens de forma a acompanhar seus mais íntimos pensamentos descrevendo, dessa forma, as fases de sua vida: infância, adolescência e adulta.
A obra concentra-se nas características psicológicas e emocionais de seu protagonista Stephen Dedalus, nome este que revela o conflito entre a religião (pecado x santidade) e a arte, certos de que o nome Stephen corresponde a Estevão (primeiro mártir da igreja), e Dedalus corresponde ao mito grego de Dédalo.
É considerado um romance autobiográfico, pois o universo ficcional de Joyce concentra-se em Dublin, sua terra natal, refletindo toda a sua vida familiar, eventos, amizades e inimizades dos tempos de escola e da faculdade. Assim como o protagonista Dedalus, Joyce teve experiências com prostitutas na adolescência, e precisou lidar com questões de fé; foi o mais velho de dez irmãos e recebeu educação em escolas.
A ação do romance concentra-se nas reflexões, divagações e reações internas de Dedalus a episódios diversos (como diálogos e atitudes de outros personagens) ao longo do tempo.
Em relação ao tempo em que se passa a trama, embora seguido de uma cronologia natural, da infância à maturidade, o tempo do romance é um tempo interno ao personagem.
O espaço situa-se na própria Irlanda, alternando-se entre os colégios onde Stephen estudou e sua casa. Por se tratar de um romance precisamente psicológico, o espaço estará intimamente ligado às emoções e sensações do protagonista.
Quanto ao foco narrativo, ainda que narrado em terceira pessoa, o texto não abandona o ponto de vista interno de Stephen e isto explica toda a subjetividade da obra, um dos
principais complicadores para o seu entendimento pelo leitor moderno, acostumado com a leitura mais objetiva.
Para o maior entendimento da obra, devemos levar em consideração dois aspectos que estão intimamente ligados: o sentido do nome do protagonista e o uso da técnica do fluxo de consciência.


Stephen (Estevão)

Sua história está narrada na Bíblia, nos livro de Atos dos Apóstolos, capítulos 6 e 7.
Estevão era um dos sete diáconos da Igreja Primitiva, responsável pelo acompanhamento dos membros. Sua atuação parece ter sido entre os judeus helenísticos. Foi um grande pregador, conhecido por sua reputação, sabedoria, fé e devoção a Cristo. Demonstrou grande coragem ao defender sua fé diante dos líderes religiosos de sua época. Foi julgado pelo mesmo Concílio que crucificou Jesus e que pouco antes proibira os apóstolos de falarem em Jesus.
O discurso de Estevão perante o Concílio foi, em sua maior parte, um resumo interpretativo da História do Antigo Testamento, culminando numa repreensão mordaz, pelo fato de os judeus terem assassinado Jesus.
Estevão foi morto a pedradas em praça pública e tornou-se o primeiro mártir da igreja.


O Mito de Dédalo (Dedalus)

Dédalo é a personificação do espírito da arte. Seu nome em grego significa: engenhoso, hábil, criador. Contém, em história, toda a trajetória libertária da arte.
Dédalo era um escultor-arquiteto, um artesão e engenheiro. Vivia para criar obras que servissem para melhorar o trabalho dos cidadãos de seu tempo. Possuía uma oficina em
Atenas onde, ao lado de Talo, seu sobrinho e aprendiz, engendrava instrumentos preciosos como o mastro, a vela e o machado dos carpinteiros.
Nos primeiros anos, a vida de Dédalo é um generoso ato de descobrir os materiais, as formas, os volumes e o próprio espaço. Depois, sentindo-se suplantado pelo sobrinho, comete o crime que o condenaria à morte. A partir desse momento, o artista perde sua liberdade criadora. Vítima da fuga,deverá produzir apenas aquilo que lhe ordenam, dentro das necessidades dos Estados que o fazem prisioneiro.
A antiga busca de materiais novos (o emprego do mercúrio em peças de argila, por exemplo é atribuído à Dedalos. Ele teria usado tal elemento para “dar vida” as suas imagens) é substituída pelo trabalho projetado com fim político, determinado, limitado.
Uma vez em Creta, sobre o governo de Minos, Dédalo ilustra até as últimas conseqüências o mito da escravidão da arte: cria o labirinto de Cnossos, que deveria conter a fúria do Minotauro. Mais tarde, o arquiteto e seu filho Ícaro são atirados no labirinto: o objeto de arte aprisiona o artista quando não parte de sua necessidade fundamental de expressão.
O labirinto (presídio complexo, de ruas cruzadas e rios aparentemente sem embocadura) é a mente do gênio escravizado, que cria segundo às exigência de seus dominadores, abandonando o motivo básico de sua inspiração.
Ainda no labirinto que ele próprio construíra, Dédalo engendrara dois pares de asas (um para si, outro para o seu filho Ícaro) e ambos libertaram-se.
O sentido desse fato mítico é claríssimo: o homem se salva por meio da arte do trabalho. O Vôo de Dédalo corresponde também à imaginação, conduzindo para o infinito aquilo que antes estava encerrado dentro de um enigma, aparentemente indecifrável, representado pelo labirinto. Ícaro morre por aproximar-se do Sol, que derrete as ceras de suas asas, fazendo-o despencar no mar. Dédalo fez uso de asas para procurar a liberdade.
O fato é bastante significativo de um dos princípios fundamentais da arquitetura: a “conquista do espaço”, a luta contra a lei da gravidade que prende o homem ao solo.


Fluxo de Consciência

Do inglês “Stream of Conciousness” , o termo foi criado pelo psicólogo William James, apresentado em sua principal obra Princípios de Psicologia (1890). William James criou esse termo para demonstrar a continuidade dos processos mentais, que não se manifesta fragmentadamente, em pedaços sucessivos, mas num fluxo contínuo de pensamentos.
Fluxo de Consciência é uma técnica introduzida por James Joyce, em que o monólogo interior de um ou mais personagens é transcrito. Nessa técnica, a narrativa apresenta-se como um fluxo de consciência que intercepta presente e passado, quebrando os limites espaço-temporais. No fluxo de consciência há uma quebra da narrativa linear, onde já não é tão claro distinguir entre as lembranças dos personagens e a situação presentemente narrada. No Brasil, Clarice Lispector e Guimarães Rosa utilizaram-se dessa técnica.
Foi inicialmente formulado pelos escritores russos do século XIX, tais como Dostoievsky, Gogol, Tchecov, Tolstoi, entres outros, e consiste em explorar a temática psicológica, mas de modo tão profundo que toda a narrativa gira em torno dela.
James Joyce e Proust alcançam subterrâneos da mente, influenciados pelos avanços de Freud. É considerado uma das maiores descobertas literárias de todos os tempos. O cérebro é um labirinto misterioso e fantástico.


Macroanálise

Tendo em vista todas as partes já dispostas anteriormente e analisadas, podemos depreender a genialidade de Joyce ao utilizar-se de métodos tão modernos e complexos para criar uma obra tão completa em si mesma como manifestação de um novo estilo na literatura universal.
Comecemos pela frase inicial do livro, transcrita em latim da obra Metarmofoses de Ovídio: “Et ignotas omnium dimittit in artes” (e deixa cair em artes desconhecidas de todos), um convite para adentrar no mundo das artes ainda não descobertas, ares ainda não conquistados. Depois, passemos pela dicotomia gerada pelo nome do protagonista da obra, que revela a intensa luta entre um sentimento e desejo materno da vida sacerdotal, religiosa, e a imensa vontade de desprender-se de todas as convenções e dogmas para penetrar no imenso mundo das artes. Stephen vive uma grande evolução em seu espírito, desprendendo-se, libertando-se do labirinto familiar, religioso e convencional, para alçar vôo no vasto horizonte do mundo das artes, assim como Dédalo alçou vôo para libertar-se de sua prisão.
Em seguida temos um personagem completamente evolutivo, narrando-se a si mesmo, começando do ponto mais remoto de suas lembranças, ainda criança, passando pela infância, adolescência e fase adulta. Percebemos que a linguagem e a estrutura narrativa evoluem conjuntamente ao personagem, o que garante e condensa a unidade e diversidade da obra.
Não estamos falando de uma simples construção textual, alegorizada ou moralizante num sentido literário, mas de uma obra que conta com um enredo simples que torna-se rico e intenso, quando nos sentimos mergulhar no universo interior do personagem, participando de suas frustrações e decepções, seus conflitos, momentos íntimos e seus desejo de liberdade, uma busca incessante por encontrar-se e reconhecer-se como alguém no mundo das idéias.
A busca de Stephen é uma só: libertar-se de todo um meio pequeno e medíocre que o prende a uma realidade que não aceita, nem lhe interessa.
Na obra temos partes muito interessantes, como o sermão que apresenta um inferno de maneira bem científica, mostrando um fogo que não consome, mas queima e arde. Uma visão que desfaria toda percepção do inferno dantesco, uma verdadeira reorganização sensorial.
Temos também, de forma que assemelha-se à investigação científica, a exploração do universo psicológico do ser humano, suas reminiscências, lembranças íntimas, medos, anseios, amores e traumas.
Descobrimos um personagem tão brilhante, admirador de Byron, Black e Shelley, e que é capaz de discutir Aristóteles, Platão, São Tomás de Aquino. Criar e desenvolver teses próprias sobre o Belo, Estética, a Arte como um todo, fragmentada em suas partes mais significantes: forma, conteúdo, representação.
O ponto mais fascinante da narrativa é a epifania vivida por Stephen na praia, onde finalmente, depois de visualizar o homem voando como um falcão em direção ao sol, percebe qual a sua verdadeira vocação ou predestinação: ser artista. Em um misto de êxtase e fascinação, encontra-se finalmente, consigo mesmo: o Dédalo voando em busca da liberdade e da excelência da arte.
Por fim encerramos com o pedido final de Stephen, uma espécie de súplica ou oração, a um ser ou entidade que o guiou a toda essa trajetória de descoberta da arte: “Velho pai, velho artífice, mantém-me, agora e sempre em boa forma”.

Do cair de uma folha

Sinta o aroma que está no ar.
Feche os olhos e apenas ouça
O sussurro cândido do vento.
Não se prenda! Solte os braços!
Abra-os como se estivesse
Recebendo a mais grata dádiva
Que a criação te dá.
Escute o canto harmonioso,
E alinhe-o ao som de teu coração.
Não tenha medo de ser livre,
Se quiser você pode até flutuar
Embalado nesta cadência eólica,
Ritmo poético da criação.
Agora abra os olhos!
Contemple a mágica ao seu redor!
Veja aquela folha desprendida
De seu firme e forte galho.
Veja esta folha ser embalada
Com carinho pelo vento.
Admire sua dança, seus contornos,
Sua graça tão simples e singela.
Observe-a cair ao chão
Cessando seu festejo...
Assim ela ficará até que
Outro vento maroto a lance
A dançar pelo ar.

De uma Luz

Áureo raio desvela o firmamento
Plácido como uma brisa outonal.
Nívea jóia de divina conjunção
De todos os astros da celeste morada,
Onde todo sonho é uma graça
Melodiosa e eternal.

Esta bendita luz vem raiando,
Crescendo, expandindo-se,
Tomando conta do meu ser.
Sinto-me inebriado,
Já não tenho chão sobre meus pés.
Sou um misto de paz e alegria.

Percebo em mim asas angelicais
Ruflando imaculadas no ar.
Sou liberta ave peregrina
Transportada ao lugar secreto
De meus anseios
De minhas quimeras.

Abro os braços e me deixo guiar,
Meu corpo está repleto de luz.
Sou estrela rutilante
Rasgando este céu de desencanto,
Subindo cada vez mais alto,
Até sumir por entre o espaço.

Madame Bovary

RESUMO DA OBRA

Carlos Bovary é um menino tímido e acanhado, superprotegido pela mãe e indiferente perante o pai. Entra para o colégio por iniciativa materna. Crescido, ingressa para a universidade, onde depois de muito esforço, torna-se médico. A mãe preocupada com seu destino, arruma-lhe um emprego em Tostes e um casamento com a Sra. Heloísa Dubuc, viúva de um oficial de justiça, mais velha que Carlos, mas possuidora de um bom rendimento financeiro. Casado, Carlos vive sob o domínio da esposa que é extremamente sufocadora e mandona. Uma noite recebe um chamado para atender uma vítima de fratura na residência dos Bertaux, que distava 6 léguas de Tostes. Lá atende o Sr. Rouault, chefe da casa, viúvo, e conhece Ema, uma moça extremamente bela e encantadora. Fascinado pela moça faz visitas constantes à família, sob pretexto de acompanhar a recuperação do paciente. Sua esposa enciumada, após tomar conhecimento de Ema, proíbe-o de retornar à casa dos Bertaux. Carlos resignado em tudo obedece a esposa e afasta-se deles. Pouco tempo depois, acometida de um mal súbito, Heloísa morre.
Uma manhã, depois de cinco meses, o Sr. Rouault em uma visita de pagamento a Carlos, convida-o para que passe alguns dias em sua propriedade, a fim de, superar a perda da esposa. Carlos vai e fica três dias, em que, com um empurrão do Sr. Rouault, toma a mão de Ema em casamento. Depois de acertados os preparativos todos, Carlos e Ema casam-se e vão viver em Tostes.
Os primeiros meses do casamento pareciam agradáveis, mas com o decorrer dos dias, Ema percebe a falta de iniciativa e ambição do marido e começa a desgostar-se e frustra-se com o casamento. Ema fora uma moça criada em convento, onde seu único prazer e distração, era a leitura dos romances, os quais desejava ardentemente viver. Imaginou que com o casamento, encontraria este mundo encantado das histórias dos romances.
Após um convite para participar de um baile na propriedade do Marquês d'Andervilliers, em Vaubyessard, ficando encantada e deslumbrada com aquele mundo tão próximo dos livros e tão distante do seu, Ema começa a desejar desesperadamente que sua vida tome um rumo diferente do atual. Insatisfeita com a antiga empregada de Carlos, Nastásia, Ema a despede e contrata a jovem Felicidade. Começa a ter problemas nervosos, ataques e desmaios. Preocupado com a saúde da mulher, Carlos é aconselhado a mudar de cidade. Descobre-se que Ema está grávida. Tudo resolvido, vão morar em Yonville, uma localidade próxima de Ruão, onde Carlos e Ema conhecem diversas pessoas, entre elas, a Sr. Lefrançois (a estalajadeira), o Sr. Homais (o farmacêutico), o abade Bournisien, Sr. Binet, Sr. L'Heureux (o agiota e comerciante), e o jovem rapaz, Léon.
Desfrutando de uma maior liberdade, Ema continua a sentir-se infeliz, fato que Carlos é incapaz de discernir. Após dar a luz à Berta, Ema percebe que Léon está apaixonado por ela, e embora corresponda a esse sentimento, afasta o rapaz de si. Desiludido, Léon parte para Paris. Ema entra num estado de profunda tristeza e insatisfação, até que conhece Rodolfo, um homem de belo porte, elegante e sem caráter algum. Este aproxima-se de Ema para seduzi-la e torná-la mais uma entre suas muitas amantes. Ema entrega-se a essa aventura, vivendo-a intensamente. Os dois amantes encontram-se escondidos, quase que diariamente, até que Ema, sentindo-se culpada, põe fim ao relacionamento.
Carlos é convencido por Homais, com o auxílio de Ema, a fazer uma aparentemente simples cirurgia em Hipólito, um rapaz manco. A cirurgia é mão sucedida, trazendo a amputação da perna do rapaz. Ema, profundamente decepcionada com o marido, entrega-se novamente aos braços de Rodolfo. Ema começa a contrair dívidas, e assinar promissórias de L'Heureux. Ema e Rodolfo planejam fugir, e na véspera da fuga, ela recebe uma carta, onde Rodolfo declarara-se vítima da fatalidade e revelando que não fugirá com ela.
Após o fato, Ema entra em um processo depressivo, ficando muito tempo doente, tendo o marido sempre a sua cabeceira. Como Carlos não trabalha para poder ficar junto da mulher, toma dinheiro emprestado de L'Heureux, para pagar com juros. Seguindo os conselhos de Homais, Carlos leva-a para assistir uma ópera em Ruão, e reencontram Léon, já passados dois anos desde sua partida. Carlos é obrigado a retornar no dia seguinte para Yonville, mas deixa Ema, para que esta possa assistir a segunda apresentação da ópera. Ema , entrega-se a Léon, vivendo os dois, uma intensa paixão.
Durante muito tempo, Ema e Léon correspondem-se e encontram-se sob o pretexto de Ema tomar lições de piano. Num desse retornos, Ema descobre que suas dívidas estão sendo protestadas. Seus bens são avaliados e ela em desespero, procura uma solução. Tenta pedir dinheiro emprestado a Léon, mas este não o consegue. Vai em busca de Rodolfo, que diz não possuir mais dinheiro. Ema desesperada e já transtornada, vai até a farmácia de Homais e envenena-se com arsênico. Retorna para casa e depois de muito agonizar, despede-se da filha e morre.
Carlos muito abalado com a morte da esposa, não consegue seguir adiante com sua vida. Descobre todas as cartas que comprovam os casos de sua mulher com Léon e Rodolfo, mas não lhe imputa culpa alguma e nem sente raiva ou ódio pelos outros dois. Por fim, Berta ao ir para o jardim, chamar o pai para brincar consigo, dá com ele morto.
Depois de que tudo na casa é vendido, reunem uma pequena quantia que sobrou da dívida e enviam a menina para viver com a avó. Esta morre no mesmo ano, e como o avô, o Sr. Rouault está paralítico, vai viver com uma tia pobre que lhe arruma emprego em uma tecelagem, para ganhar dinheiro.



MICROANÁLISE

ENREDO

O enredo divide-se da seguinte forma:

APRESENTAÇÃO: O narrador apresenta Carlos Bovary ainda na infância, contando sua criação, a história de seus pais, sua entrada para o colégio e universidade, seu primeiro casamento com a Sra. Dubuc, sua consequente viuvez, encontro e casamento com Ema.

COMPLICAÇÃO: Inicia-se logo após o casamento de Carlos e Ema, a insatisfação e desilusão da moça, sua gravidez e mudança de Tostes para Yonville, onde conhece seus amantes e vive intensamente suas paixões e amores.

CLÍMAX: Quando Ema toma conhecimento das dívidas protestadas, caindo em desespero, procurando freneticamente uma solução que culminará com seu auto-envenenamento e morte.

CONCLUSÃO: Após a morte de Ema, quando Carlos toma conhecimento das aventuras da esposa, a morte do mesmo e o destino nada romântico de Berta.


FOCO NARRATIVO

No início temos um FOCO NARRATIVO INTERNO, com um NARRADOR TESTEMUNHA, que presencia de forma pessoal os eventos referentes a entrada e permanência de Carlos Bovary no colégio, sob o signo de um “NÓS” na narrativa.
No desenrolar desse primeiro momento, este narrador vai diluindo-se até o foco tornar-se um FOCO NARRATIVO EXTERNO, e revelar um NARRADOR ONISCIENTE na terceira pessoa, com poder de sondar mentes e antever ações. Este foco narrativo circundará pelos vários personagens, indicando uma multiplicidade na narração, dando ao texto o ritmo e a velocidade das ações. O narrador em alguns momentos revelará uma objetividade reflexiva sem interferir ou romper a estrutura narrativa.


TEMPO

DA NARRATIVA: é predominantemente cronológico, mas possui momentos em que a narrativa exige um tempo psicológico, representado pelos conflitos de Ema.

DA NARRAÇÃO: segue uma ordem linear, com alguns flash-backs para contar a história dos pais de Carlos e a adolescência de Ema no convento. Segue a cronologia habitual, partindo do início mais remoto do passado (a infância de Carlos) até o futuro mais distante (o destino de Berta).


ESPAÇO

Os espaços na obra são bem distintos:

FÍSICO: Temos as localidades de Tostes, Ruão, Vaubyessard, Yonville, Paris, o colégio, o convento e o campo. São na maioria espaços urbanos, com exceção do campo onde Ema vivia.

SOCIAL: Transitam entre a burguesia, os camponeses e os de posição aristocrática. Esses espaços exercem influência sobre os personagens e determinam seus comportamentos.


PERSONAGENS

EMA BOVARY – É a protagonista (ou heroína) do romance. Uma personagem que transita entre o idealismo romântico e a temática realista. Nasceu e viveu no campo, era simples, porém com modos de um membro da aristocracia. Após o casamento, tornou-se geniosa, frustrada, sedenta por romance, aventuras, tudo aquilo que fosse o oposto de sua vida tediosa e sem perspectiva ao lado do marido. Seu nome significa “universal”, o que a torna uma personagem amplo, livre de qualquer estereótipo ou idealização. É uma personagem evolutiva, pois em toda a trama, vai crescendo e modificando-se.

CARLOS BOVARY – É o antagonista, pois se opõe a todos os ideais de Ema, mesmo que não tenha conhecimento disso. É uma personagem apática. Desde o início sofre com sua falta de iniciativa e de controle de sua própria vida. É acomodado e conformado com tudo, não percebendo o que acontece a sua volta. Casado com Ema, faz com que essa sinta-se infeliz no casamento, sem suspeitar que isso ocorra. Tem uma visão extremamente romântica e idealizada da mulher. Seu nome significa “homem viril”, o que demonstra uma antítese do autor, ao criar esse personagem, que não demonstra qualquer tipo de virilidade. É uma personagem estática, não sofre qualquer tipo de alteração na trama. Representa o espírito romântico já decadente.

BERTA BOVARY – É filha do casal, Ema e Carlos. Aparentemente no meio da trama demonstra ser uma personagem secundária, mas no desfecho revela-se como extensão protagonizadora de Ema, já que é nela que se reflete todo o resultado da narrativa. É a concretização realista de toda a trama. É por consequência uma personagem evolutiva, pois seu futuro demonstra-se oposto a qualquer tipo de previsão. Seu nome significa “gloriosa, determinada, brilhante”.

SRA. BOVARY (mãe de Carlos) – Personagem secundária, antigamente doce e jovial, mas após casar e envelhecer torna-se amarga, superprotetora para com o filho, econômica, religiosa, mal-humorada, nervosa, resmungona e extremamente tradicional. Com a incapacidade do marido de exercer sua função de chefe de família, assume a direção da casa e o controle da vida do filho, até este casar-se com Ema. Representa a resistência o espírito tradicionalista suprimido pela ascensão da nova burguesia. É uma personagem estática, não tendo qualquer tipo de mudança que interfira na trama.

CARLOS DINIZ BARTOLOMEU BOVARY (pai de Carlos) – Personagem secundária. Homem de bos presença, bem-falante, boêmio e um tanto descuidado com suas responsabilidades conjugais e familiares. É gastador e aventureiro. Representa o antigo código da nobreza, que ainda que não possuísse nada, aparentava ter tudo. É uma personagem estática.

SR. ROUAULT (pai de Ema) – Personagem secundária. É um homem do campo, abastado, mas sem muito tato para os negócios. Espirituoso e um tanto avaro, vê em Carlos a oportunidade de “livrar-se” da filha sem ter de lançar mão de um alto dote. Representa em si a esfera do campo, ameaçada pelo avanço tecnológico e capitalista. É uma personagem estática.

SRA. HELOÍSA DUBUC (1ª esposa de Carlos) – Personagem secundária. Viúva de um oficial de justiça, com 45 anos, une-se matrimonialmente com Carlos, graças a um arranjo da mãe dele. É uma mulher insegura e mandona. Está falida, mas consegue esconder isso de todos. Representa o antigo regime dos casamentos por conveniência. É uma personagem estática.

NASTÁSIA – Personagem secundária, é a primeira criada de Carlos, demitida por Ema. Submissa e prestativa, quando resolve reagir, é despedida. Representa os antigos costumes, e a antiga classe de serviçais, anterior as transformações da Revolução Industrial. É uma personagem estática.

FELICIDADE – Personagem secundária, é a nova criada de Ema. É jovem e alegre, um tanto imatura. Representa o início da nova fase da vida de Ema, e é uma metáfora do sentimento de busca de felicidade da mesma. É uma personagem estática.

SR. HOMAIS (o farmacêutico) – Personagem secundária. É interesseiro, dissimulado, oportunista, falante e dado a conhecer tudo. Vale-se de seu tom filosófico e sua crença na ciência. Torna-se amigo íntimo de Carlos e Ema, aproximando as famílias. Tira proveito da presença de Carlos, por ser médico, para benefício próprio, já que não pode ocupar a posição do tal. Vale-se muitas vezes de escrever artigos no Farol de Ruão para garantir um certo status e privilégios. Quando Carlos cai em ruína, afasta seus filhos do convívio com Berta. É uma personagem que personifica características idealistas por ser anti-clerical, e ter uma fé científica. Representa esse processo de confrontação e expansão do ponto de vista realista. É uma personagem estática.

SR. BINET – Personagem secundária. É um ex-carabineiro que se distrae em seu torno ou caçando. É pontual e exigente. Representa o militarismo decadente. Personagem estática.

SRA. LEFRANÇOIS – Personagem secundária, é uma estalajadeira antiga. Cordial e prestativa, representa a velha burguesia oprimida pelo avanço do “novo”. Personagem estática.

SR. L'HEUREUX – Personagem secundária. É um comerciante de artigos diversificados e agiota. Ambicioso, aproveitador, interesseiro e muito esperto. Exerce grande influência sobre Ema, aproveitando-se de seu gosto por adquirir coisas. Representa a nova burguesia em ascensão e personifica em si o espírito capitalista. Personagem estática.

LÉON – Personagem secundária. Em um primeiro momento é romântico e puro. Nutre um amor secreto por Ema, o qual não consegue revelar. Em um segundo momento, quando está em Ruão, mostra-se mais maduro e sensato, determinado a não deixar escapar a oportunidade de viver um grande romance com Ema. Léon também é um personagem que transita entre o Romantismo e o Realismo. Seu nome deriva de Léo, e indica “pessoa determinada, corajosa e ousada”. É uma personagem evolutiva.

RODOLFO – Personagem secundária. Seu nome vem de “lobo famoso”. Exímio sedutor, de bom porte e elegância. Habilidoso com as palavras e uma mente bem criativa, consegue enlaçar Ema em seus galanteios e torná-la seu objeto de prazer. Quando sentiu que não precisava mais dos amores dela, a descarta. Rodolfo representa a verdadeira face do romance realista, ao descrever de maneira pessimista, como o amor pode ser pernicioso neste novo momento da sociedade. É uma personagem estática.

ABADE BOURNISIEN – Personagem secundária. É o representante religioso de Yonville, mais preocupado em “catequizar” crianças e torná-las novos cristãos, do que atender as necessidades espirituais de seus paroquianos. Homem sem muita visão e de pouca percepção. Na trama representa a presença do clero e da religião, como algo que prende pessoas em dogmas e preceitos. Personagem estática.

JUSTINO – Personagem secundária. É funcionário de Homais, tratado com pouca cortesia e consideração. É jovem, discreto e um tanto resignado aos maus-tratos de seu patrão. O interessante é que este talvez seja o personagem que mais surpreenda-nos no desfecho da obra. Durante toda a trama ele passa despercebidamente, sem demonstrar grandes ações. O autor dá-nos a entender que ele talvez goste de Felicidade, mas no dia do sepultamento de Ema, somos surpreendidos com sua figura sobre o túmulo, chorando um amor nunca revelado ou percebido. A única pista anterior que temos a esse amor, é o cuidado com que ele limpa as botas de Ema. Justino representa o espírito ainda resistente do Romantismo puro e desinteressado. É uma personagem evolutiva.

CEGO – Personagem secundária. Esta estranha figura aparece repentinamente na trama. É um cego que vive da mendicância e que possui algumas deformidades na face. É uma personagem tipicamente shakespeariana. Na trama ele representa a manifestação subconsciente do estado emocional de Ema, tanto que esta no momento de sua morte, ouve-o cantando: “Muitas vezes, dum belo dia de calor / Faz que as moças sonhem com o amor...” . Esta canção reflete toda a trajetória de Ema em sua busca do amor verdadeiro. Obviamente este cego atuará em dois planos distintos: no plano metafísico, quando relacionado à Ema, e um plano físico relacionado a Homais, que consegue-lhe um fim nada agradável. É uma personagem híbrida; estática sob uma esfera de análise, e evolutiva sob outra esfera.


MACROANÁLISE

Tomando como ponto de partida todos os princípios já analisados na microanálise, e tendo como base os pressupostos teóricos já desenvolvidos, partiremos, assim, para análise da obra como um todo.
Sendo o autor, Gustave Flaubert, um escritor em sua essência, romântico, ao entrar nessa nova esfera realista da investigação do subconsciente humano e da sociedade, produz uma obra completamente densa de análise e reflexão. Constroe uma obra literária que personifica o olhar de insatisfação, de uma ótica realista, contra os dois pilares fundamentais da sociedade: o casamento e a religião.
Em Madame Bovary, toda a trama circunda seus dois principais personagens: Carlos e Ema. Estuda toda essa composição disforme, até então oculta ao olhar crítico. Temos uma personagem que vive à margem de toda ação, apenas aceitando de forma branda a todo o contexto de vida que lhe foi imposto, primeiro pelos pais, depois pela esposa, e mais adiante pelo determinismo do destino. De outro lado temos uma personagem que não se conforma com toda essa construção arbitrária de uma sociedade que impõe a mulher um papel secundário, privando-a de suas escolhas e de assumir as rédeas de seu próprio destino; uma personagem que busca alcançar, mesmo que de modo reacionário, a satisfação de seus dias, o orgulho de sua condição de mulher, mãe e amante. Assim, Carlos é o reverso de Ema.
Temos uma obra fundamentada em duas personagens que geram uma antítese em sua própria união, vivendo em planos de compreensão tão diferentes que, ao invés de criarem um choque em todo o processo narrativo, fragmentando e diluindo a força e constância da trama, geram um ponto de junção ou fusão tão homogêneo que impactam o leitor já em um primeiro momento.
Percebemos que o romance é o espelhamento de sua heroína. No início têm-se a falsa impressão de que será mais uma história ambientada no ideário romântico, mas a narrativa vai crescendo e evoluindo tanto que, deparamo-nos com uma faceta realista, assim como a própria heroína que sofre essa mesma transição, partindo do remoto ponto romântico até atingir o excelente nível realista. Isso não ocorre por acaso, ou por simples manifestação da inspiração do artista que o compõe, mas é a elaboração engenhosa de uma mente também já gasta por toda a subjetividade vazia de um romantismo decadente.
A união de duas personagens tão destoantes, revelará o comportamento de uma sociedade também destoante e ambígua. Quando Ema depara-se com um casamento frustrado e infrutífero, sente em seu íntimo a imensa vontade de desvencilhar-se desta situação. Porém, ela é mulher, e esse estigma marcado pela sociedade cria em seu interior o primeiro conflito de proporção letal aos seus sonhos. Ema saíra do campo e já habitava os romances. Quando chega ao pequeno burgo de Tostes vê-se enterrada em um mundo de mesmice e rotina. Ao adentrar a esfera encantadora dos salões e bailes, almeja igualar-se àquelas belas mulheres da alta aristocracia, algo do qual já estivera habituada nos romances que lera. Ao sair desse mundo de encantamento e magia, que somente o dinheiro e os títulos de nobreza podem garantir, Ema começa já a sofrer suas primeiras alterações.
Ema Bovary é uma personagem que sofre mutações na obra. No campo é apenas uma singela e frágil lagarta, que durante a trama fecha-se em um casulo de insatisfação e ressentimento, saindo dele em forma de colorida e doce borboleta, livre para voar e viver intensamente o frescor de sua primavera, antes que venham os fortes calores do verão, os tédios do outono e a infecundidade do inverno. No entanto Carlos continuará vivendo a ermo, sem rumo ou orientação capaz de colocá-lo na condição de chefe de família.
Aliás, algo nítido na obra é esse trabalho da inversão dos papéis bem interessante. Temos a amarga Sra. Bovary, que cansada da irresponsabilidade do marido, toma a direção da casa e assume o posto de chefe de família. E temos também a velha Sra. Dubuc, que insegura de seus atributos femininos, exerce cerrada posição autoritária com Carlos, seu marido. Temos também a imagem de um homem fraco e dominado, que primeiro sofre com os cuidados sufocadores da mãe, e o controle ferrenho da primeira esposa. Depois ao casar-se com Ema, Carlos torna-se refém de sua própria satisfação, não discernindo tudo o que acontece a sua volta.
O autor não trabalha com tipos caricaturais, mas cria personagens que personificam em seu “corpus literário”, todo um que de reflexão e projeção ideológica do momento e da crise moral da sociedade. Temos a figura nada cativante do clero na figura do Abade, e do confronto científico-filosófico do Farmacêutico. A velha Estalajadeira, que não possui o mesmo sucesso do judeu Agiota e Comerciante. São conflitos de ordem social, moral, religiosa, etc. O autor muito cuidadoso só não se envolve em questões políticas.
A presença dos dois amantes determinam momentos e comportamentos diferentes na vida de Ema. Com Rodolfo, Ema é intensa, voraz e inconseqüente. Aparenta mudar em seus modos, em sua maneira de vestir-se e no seu descontrole nos gastos. Com Léon é mais consciente, madura e menos inconseqüente, mas torna-se mais dissimulada e aprende o ofício da mentira. Ou seja, temos uma personagem camaleônica, que assume comportamentos de acordo com o momento que vive.
Outra coisa interessante de se notar, é a questão do tempo entrelaçado a Ema, pois quando a personagem está entediada ou frustrada, a narrativa adquire um ritmo mais lento, monótono. Mas quando ela assume comportamentos mais libertinos, a narrativa torna-se rápida e igualmente intensa. Então, deduzimos que, a personagem provoca esse balanço no ritmo e velocidade da narrativa, como forma de provocar no leitor, as mesmas sensações que incorporam a personagem.
Ema Bovary é a solidificação de todo um universo feminino, é uma personagem camaleônica e metamórfica, que dará origem a outras grandes heroínas, como por exemplo nossa Capitu de Machado de Assis, e que influenciará a criação de outras personagens tão paradoxais a esta, como Amélia e Lúcia de Eça de Queiroz.
Berta também é uma personagem, que embora não tenha grandes ações no decorrer da narrativa, revela um final um tanto intrigante. Órfã e pobre, vai parar de lugar em lugar até ter um destino certo: a casa de uma tia. Essa tia não aparece em toda a trama. Sabemos que Ema não possuía irmãos, tampouco Carlos, o que nos leva a deduzir, ser esta tia parenta distante da Sra. Bovary ou do Sr. Rouault. Tia pobre que assume a responsabilidade sobre uma garota órfã, encontra apenas um caminho: colocá-la para trabalhar em uma tecelagem para garantir o sustento de ambas. É mesmo algo interessante esse desfecho da personagem, dado pelo autor, já que a menina foi filha de uma camponesa ascendente e de um médico mediano. Herdeira direta de toda a propriedade de seu avô materno, vai viver justamente como operária em uma fábrica. Temos de forma indireta neste desfecho, a decadência do campo, a extinção da alta aristocracia, o avanço industrial e as constantes transformações científicas e médicas. Berta é de fato a última pedra fundamental que completa esse edifício da construção do estilo realista.

Resenha do livro Ensaio sobre a Cegueira

Livro: Ensaio sobre a Cegueira, de José Saramago. São Paulo: Companhia das Letras, 2ª ed., 1996, 310 páginas.

A obra Ensaio sobre a cegueira, mesmo sendo uma ficção, revela a real imagem da essência humana, deixando a sensação de algo tão próximo a nós, que chega a causar-nos um processo de catarse, o despertamento de toda uma percepção ainda adormecida, ou o desvendamento de nossos olhos. É um retrato fiel e uma análise psicológica do comportamento humano, dentro de uma nova esfera de intenso consumismo e busca desenfreada por adquirir ou conquistar bens, seja na esfera material, seja na esfera do conhecimento. Não que a busca pelo conhecimento seja algo pernicioso, ao contrário, mas a busca de um conhecimento distorcido, atrofiado e inconseqüente.
Diante da luz vermelha do semáforo, um motorista começa a gritar que está cego. É o primeiro caso da estranha cegueira, ou “treva branca”, como é chamada. Sua esposa o leva para o consultório de um oftalmologista, que surpreso, atesta não haver nada de errado com os olhos do paciente. Logo a epidemia se alastra e os novos cegos são confinados em quarentena em um manicômio desativado (imagem próxima do inferno dantesco). A situação vai crescendo em torno de toda a degeneração do gênero humano, com mortes, estupros, lutas e sujeira. Em um mar de dejetos, os seres humanos (agora parecidos com o mais vil primitivo), tentam adequar-se, ou resistir a todo esse ambiente pútrido. Um incêndio põe fim a esse lugar, e os cegos “vêem-se” livres. Porém diante a liberdade, encontram um mundo caótico e de cegos. Somente um dentre todos pode enxergar essa condição da miséria humana: a mulher do médico. Com a responsabilidade de ser a única com olhos, quando o resto do mundo não pode enxergar, abraça a causa da responsabilidade perante seus companheiros. Sob condições de escassez de alimento e água, enfrentam uma verdadeira luta pela sobrevivência.
É uma narrativa que conduz o leitor a mergulhar em um universo de reflexão e espelhamento.
Causando estranhamento com sua estrutura textual não muito convencional, o romance traz também o fato de seus personagens não serem nomeados, sendo apenas identificados por traços distintores: rapariga dos óculos escuros, garotinho estrábico, velho com tapa olho, médico, mulher do médico, primeiro cego, mulher do primeiro cego, etc. Essa falta de nomeação, garante o caráter universal da obra, que não visa atingir apenas um ponto comum, alcançando apenas uma parte isoladamente, mas quer atingir o todo.
A narrativa se dá em um lugar qualquer, o que também indica esse desejo por parte do autor de atingir o universal. A universalidade é a característica mais peculiar desse romance. Não há marcadores espaciais ou temporais; não há limites que possam separar realidade da ficção; tudo torna-se uma massa homogênea, uniforme, que usa como motivo comum um estranho tipo de cegueira: a cegueira branca.
Essa cegueira branca, ao contrário da cegueira comum que deixa a pessoa em trevas absolutas, representa uma intensidade tão poderosa, que ofusca nossa visão, fazendo-nos mergulhar numa dimensão totalmente aleatória à realidade. Num mundo onde todos buscam viver intensamente seus próprios desejos, enxergando apenas suas próprias vontades, é imperativo ter olhos que enxerguem além daquilo que a simples percepção possa atingir.
Em todo esse contexto de confronto e conflito, o narrador desempenha a função de observador, testemunha ocular, assumindo muitas vezes a posição do próprio autor, como se ambos ao mesmo tempo agissem dissociada e conjuntamente.
Ensaio sobre a cegueira não é apenas uma mera obra literária com o propósito de entreter ou causar plena satisfação de leitura, mas uma obra desconfortante que causa no leitor o choque da reflexão e auto-análise de seu papel na sociedade.