quarta-feira, 5 de agosto de 2009

Navegar é preciso, viver não é preciso

Esta poderia ser mais uma história comum, no entanto, é a incomum história de Maria. Você poderia até pensar que esta deve ser uma história como as outras, de muitas Marias, todas iguais, comuns. Mas esta Maria é diferente e digo isso com toda convicção. Nenhum ser humano na face desta inóspita terra, levou tantos baques da vida como Maria.

Aos sete anos Maria perdeu a mãe atropelada por um ônibus de viagem. Aos doze perdeu o pai assassinado em um assalto. Filha única foi morar com uma tia solteirona que mal conhecia, chamada Ofélia. Ainda bem, diria você, mas ao contrário, tia Ofélia fazia a madrasta da Cinderela parecer a fada madrinha. Rígida, tratava Maria como um recruta recém chegado ao exército, e isso não é um exagero.

- Menina malcriada, aqui você aprenderá a ser gente – dizia tia Ofélia.

Todo o dia ao acordar, um mesmo pensamento tomava conta de Maria:

- Ainda arrumo um jeito de sumir daqui e deixar essa megera morrer engasgada com o próprio veneno.

E acreditem ou não, Maria tentou, mas tentou errado. Foi pior, a tia foi atrás dela e a encontrou no meio do caminho. As bruxas dos contos de fadas costumam voar em vassouras, tia Ofélia era mais moderna, foi de viatura policial. Aquela noite foi inesquecível. Primeiro um sermão longo, exaustivo e moralista do delegado, amigo de tia Ofélia diga-se de passagem. Depois um mês de trabalho dobrado no campo de concentração da tia, perita em terrorismo psicológico, e tortura mental. Maria repetia para si mesma:

- Velha miserável, um dia eu saio daqui.

Maria foi sobrevivendo a tudo isso durante os anos. Aos dezesseis teve seu primeiro namorado, aquele que ela desejou que fosse seu príncipe encantado, montado em seu belo cavalo branco, que entraria na casa da tia e a salvaria daquele tormento. Era ele, Marcelo, seu príncipe. Ingênua menina. Marcelo mostrou ser mais vilão que príncipe. Em três meses de namoro, Marcelo havia
conquistado seu objetivo: tirar a inocência de Maria. Iludida a menina pensou:

- Agora minha vida vai mudar!

E mudou mesmo, principalmente Marcelo. Ele mudou de Estado. Seus pais tinham recebido uma proposta de trabalho no Norte do Brasil, e aceitaram. Maria ficou decepcionada, afinal de contas, ela no sudeste e ele no norte tornaria a relação inviável. O pior de tudo foi ouvir o que Marcelo disse:

- Maria se toca, eu nunca quis nada sério com você. Vai procurar sua turma e me deixe em paz.

Pobre Maria, sozinha, abandonada e ainda morando com tia Ofélia. Nesse momento a megera não se conteve e pegou ainda mais pesado com a menina, destruindo sua auto-estima.

- Menina idiota, ainda não percebeu que um rapaz em sã consciência jamais vai querer algo sério com você? Você é sem graça, sem atrativos e não tem qualidades. Ficará sozinha, largada como um trapo velho.

Maria trancou-se no quarto e chorou durante horas. Que destino triste o de Maria. Uma semana depois, tudo um pouco mais calmo, ela desmaia no meio da cozinha enquanto preparava o almoço. Preocupada com a saúde, pensando estar anêmica, recebe a cruciante notícia: está grávida. Maria sentiu um grande buraco se abrir no chão do consultório médico, puxando-a para dentro. Seis semanas de gestação. Sua vida estava acabada. Mas nada disso se comparou à reação que teve tia Ofélia. A bruxa tentou obrigar Maria a fazer o aborto. Maria decidiu. Não faria e foi o que bastou para a furiosa tia colocá-la para fora de casa.

E agora? Sem amigos, sem família, expulsa de casa e grávida de um rapaz que está a centenas de quilômetros longe e que não dá a mínima para ela. Perambulou pelas ruas até parar em um abrigo para menores. O lugar era horrível, sujo, sem conforto, realmente precário, porém, era a única coisa que tinha no momento.

Dias depois, Maria conseguiu um emprego em uma lanchonete, alugou um quartinho em uma pensão só para moças e pensou:

- Agora finalmente terei paz.

Tudo indicava que sim, até o dono da lanchonete decidir que queria ficar mais “íntimo” de Maria. Grávida de quatro meses, sentiu nojo daquele homem horrível e lhe deu uma bofetada. A bofetada custou-lhe o emprego. Novamente na rua, sentou num banco de praça e começou a perguntar a Deus:

- Hei, você que está aí em cima, por que tem tanta raiva de mim? Por que tira tudo o que tenho? O que eu fiz para merecer uma vida tão miserável e desgraçada? Responda-me.

E a resposta veio. Uma torrencial chuva começava a precipitar-se do céu. Totalmente encharcada, ela chegou na pensão e encontrou a proprietária com sua mala na mão.

- Fiquei sabendo que perdeu o emprego. Bem, sem emprego suponho que não terá como pagar o aluguel. Então vá embora, procure outro lugar para ficar. Além do mais, você está grávida. Minha pensão não é lugar para moças como você, somente moças de família podem ficar aqui.

De mala na mão, vagando sem rumo, sentiu vontade de tirar a própria vida. Olhou os carros passarem velozmente pelas ruas molhadas e de súbito lançou-se para cima deles. Foi atropelada. Estirada no chão, perde a consciência, acordando depois num quarto de hospital. Meio zonza, ficou imaginando se estava viva ou morta. Avistou uma simpática senhora a sua frente que lhe sorria, enquanto afagava seus cabelos com a mão.

- Acalme-se meu anjo, está tudo bem agora.

- O meu bebê, está tudo bem com ele?

- Calma. Seu bebê está bem. Foi por pouco, mas ele está bem.

- Eu queria ter acabado com a minha miserável vida. Não quero que o meu filho tenha a mesma sorte que eu.

- Meu anjo, não diga isso. A vida é a maior dádiva que o Criador nos dá. Gerar uma outra vida dentro de nós é um milagre sem dimensões.

- Não! Não há como desejar continuar vivendo. Tudo pra mim acontece da pior forma. Não tenho motivo pra querer viver – chorava amargamente Maria.

- Tem sim. Esta vida que está aí dentro depende de você , assim como você depende dela. Viver não é fácil. É difícil navegar contra as marés, mas é preciso. Nessa vida alguns sofrem, outros tem alegria, muitos choram, mas todos nós independente de quem sejamos, passamos por provações que desafiam nossa fé no Criador, no mundo, nas pessoas, mas nesses momentos, temos que arrancar forças de dentro de nossa triste situação. Ninguém nesta vida sorri, sem que antes tenha chorado.

- Não consigo entender onde a senhora quer chegar.

- Meu anjo, hoje se você quiser, sua vida pode mudar.

- Como?

- A resposta está em você. Está no seu pequeno milagre. Você é uma menina jovem, com uma vida inteira pela frente. Tenha fé. Tenha coragem e acima de tudo, tenha amor por si mesma e pelo seu pequeno milagre. Agora tenho que ir. Descanse, você precisa.

- Espere, qual o nome da senhora, eu....

A simpática senhora, já havia aberto a porta e sumido. Logo em seguida uma enfermeira entrou.

- Hum, vejo que já acordou.

- Enfermeira, quem era a senhora que acabou de sair daqui?

- Senhora? Sinto muito, mas não há ninguém nessa ala do hospital, somente eu que estou de plantão.

Maria ficou assustada. Quem seria àquela senhora? Por que lhe disse tudo aquilo? Uma coisa era certa, cada palavra dita por ela, a fez refletir e desejar um novo rumo a sua vida. Sentia vontade de viver. Viver para ela mesma, viver pelo filho.

Saindo do hospital, voltou para o abrigo. Em poucas semanas, começou a vender doces nas ruas. Quatro meses depois seu bebê nascia. Era tão pequeno, tão delicado, frágil. Deu-lhe o nome de Gabriel.

- Meu pequeno milagre, Gabriel, um anjo enviado dos céus para mim.

Maria não se sentia mais sozinha. Todos os dias esforçava-se mais. Alugou um novo quartinho em outra pensão. Lavava roupa pra fora, passava, fazia faxina nas casas de pessoas do bairro. Logo que Gabriel fez dois anos, inscreveu-o em uma creche e começou a trabalhar como atendente em uma padaria. Agora não mais se lamentava nem maldizia sua vida. Sentia-se amada por si mesma. Tia Ofélia, Marcelo, o dono da lanchonete e a dona da pensão, eram agora uma lembrança distante, que não doía mais.

Hoje Maria tem trinta e dois anos e Gabriel tem quinze. Os dois moram em uma casa de quatro cômodos bem modesta, mas perfeitamente arrumada. Maria trabalha como costureira em sua pequena oficina e Gabriel acaba de iniciar o Ensino Médio. Seu desejo é ser professor, formar-se em Letras. Ele é grato por tudo o que a mãe fez para criá-lo e educá-lo.

Maria sente-se realizada, com desejo de viver intensamente cada dia, por si mesma e pelo filho que tanto ama, o seu milagre. E agora ela está namorando. O nome dele é José, um homem simples, mas decente em toda a sua maneira de viver. Tudo demonstra que esse namoro possa virar coisa séria, mas isso só o futuro vai revelar.

Todos os dias Maria deseja poder reencontrar aquela senhora que tanto a ajudou naquele momento difícil. Ela foi à resposta enviada por Deus naquela hora de desespero. Talvez fosse um anjo, mas tudo o que Maria quer é poder agradecê-la e dizer-lhe que hoje é feliz e sente prazer em viver.

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