Livro: Ensaio sobre a Cegueira, de José Saramago. São Paulo: Companhia das Letras, 2ª ed., 1996, 310 páginas.
A obra Ensaio sobre a cegueira, mesmo sendo uma ficção, revela a real imagem da essência humana, deixando a sensação de algo tão próximo a nós, que chega a causar-nos um processo de catarse, o despertamento de toda uma percepção ainda adormecida, ou o desvendamento de nossos olhos. É um retrato fiel e uma análise psicológica do comportamento humano, dentro de uma nova esfera de intenso consumismo e busca desenfreada por adquirir ou conquistar bens, seja na esfera material, seja na esfera do conhecimento. Não que a busca pelo conhecimento seja algo pernicioso, ao contrário, mas a busca de um conhecimento distorcido, atrofiado e inconseqüente.
Diante da luz vermelha do semáforo, um motorista começa a gritar que está cego. É o primeiro caso da estranha cegueira, ou “treva branca”, como é chamada. Sua esposa o leva para o consultório de um oftalmologista, que surpreso, atesta não haver nada de errado com os olhos do paciente. Logo a epidemia se alastra e os novos cegos são confinados em quarentena em um manicômio desativado (imagem próxima do inferno dantesco). A situação vai crescendo em torno de toda a degeneração do gênero humano, com mortes, estupros, lutas e sujeira. Em um mar de dejetos, os seres humanos (agora parecidos com o mais vil primitivo), tentam adequar-se, ou resistir a todo esse ambiente pútrido. Um incêndio põe fim a esse lugar, e os cegos “vêem-se” livres. Porém diante a liberdade, encontram um mundo caótico e de cegos. Somente um dentre todos pode enxergar essa condição da miséria humana: a mulher do médico. Com a responsabilidade de ser a única com olhos, quando o resto do mundo não pode enxergar, abraça a causa da responsabilidade perante seus companheiros. Sob condições de escassez de alimento e água, enfrentam uma verdadeira luta pela sobrevivência.
É uma narrativa que conduz o leitor a mergulhar em um universo de reflexão e espelhamento.
Causando estranhamento com sua estrutura textual não muito convencional, o romance traz também o fato de seus personagens não serem nomeados, sendo apenas identificados por traços distintores: rapariga dos óculos escuros, garotinho estrábico, velho com tapa olho, médico, mulher do médico, primeiro cego, mulher do primeiro cego, etc. Essa falta de nomeação, garante o caráter universal da obra, que não visa atingir apenas um ponto comum, alcançando apenas uma parte isoladamente, mas quer atingir o todo.
A narrativa se dá em um lugar qualquer, o que também indica esse desejo por parte do autor de atingir o universal. A universalidade é a característica mais peculiar desse romance. Não há marcadores espaciais ou temporais; não há limites que possam separar realidade da ficção; tudo torna-se uma massa homogênea, uniforme, que usa como motivo comum um estranho tipo de cegueira: a cegueira branca.
Essa cegueira branca, ao contrário da cegueira comum que deixa a pessoa em trevas absolutas, representa uma intensidade tão poderosa, que ofusca nossa visão, fazendo-nos mergulhar numa dimensão totalmente aleatória à realidade. Num mundo onde todos buscam viver intensamente seus próprios desejos, enxergando apenas suas próprias vontades, é imperativo ter olhos que enxerguem além daquilo que a simples percepção possa atingir.
Em todo esse contexto de confronto e conflito, o narrador desempenha a função de observador, testemunha ocular, assumindo muitas vezes a posição do próprio autor, como se ambos ao mesmo tempo agissem dissociada e conjuntamente.
Ensaio sobre a cegueira não é apenas uma mera obra literária com o propósito de entreter ou causar plena satisfação de leitura, mas uma obra desconfortante que causa no leitor o choque da reflexão e auto-análise de seu papel na sociedade.
terça-feira, 4 de agosto de 2009
Assinar:
Postar comentários (Atom)
Nenhum comentário:
Postar um comentário